Morre Eva Sopher, Presidente da Fundação Theatro São Pedro com 94 anos. Nossos sentimentos a família e sociedade gaúcha. “Eu sou uma mulher plena”. Há quem diga que santo de casa não faz milagres. Porém, para quem conhece a história de Eva Sopher e do Theatro São Pedro (TSP), em Porto Alegre, esta afirmação perde completamente o sentido.

Abaixo a entrevista que realizamos com Eva Sopher, no ano de 2009.


Eva Sopher, com 36 anos dedicados inteiramente ao Theatro São Pedro, uma das maiores referências culturais do sul do país.

Do seu imenso amor pela arte e a cultura, Eva não mediu esforços para reerguer a casa secular da Praça Marechal Deodoro, no centro de Porto Alegre e dar vida ao inédito Multipalco, o maior complexo cultural da América Latina, com 16 mil m² construídos ao longo de dez terrenos ao lado do TSP.

Eva costuma dizer que sem a ajuda do próprio São Pedro – ele mesmo, o guardião dos portões do céu – o milagre da sua obra jamais teria acontecido. Alguém duvida?

O seu dia começa cedo?

Meu dia começa por volta das 7h, em casa, porque às vezes as pessoas me perguntam qual é a minha residência, se é o Theatro São Pedro ou a outra, então eu digo que, por enquanto é a outra, onde tomo o café da manhã, leio os jornais e durmo.

Eva SopherEva Sopher

A senhora foi adotada ou adotou o Theatro São Pedro?

Olha, é uma pergunta difícil de responder! [risos] Quando vêm pessoas de fora, eu às vezes me apresento como a avó da casa, mas como ela tem 150 anos, não posso ser a avó! Então eu devo ser uma neta.

Não seria a alma da casa?

Eu acho que é isso! Não dá para separar uma coisa da outra! Assumi a coordenação de uma restauração, quando na verdade foi uma reconstrução total do Theatro em 1975. Levamos nove anos nisso e reinauguramos a casa em 1984. Eu sempre digo que foi preciso a mão de São Pedro para que isso acontecesse.

O Theatro foi construído entre 1850 a 1858, quando Porto Alegre tinha cerca de 18 mil habitantes, e hoje tem mais de 1,5 milhão de pessoas. Durante a reconstrução, nós dobrarmos a área útil, mas era claro que precisávamos de mais espaço. O primeiro ofício para pedir espaço ao lado da centenária casa, para a construção do Multipalco, é de agosto de 1985. A partir de um concurso público, para a escolha dos arquitetos, começamos a trabalhar em março de 2003.

A senhora sempre está em atividade?

Sim, e como boa geminiana sempre faço mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Quando nós viemos da Alemanha ao Brasil eu tinha 13 anos. Isso foi em 1937, fugindo do nazismo. Tivéssemos demorado um pouco mais, teríamos sido assassinados como o resto. Meu pai era bancário e naquela ocasião consultou um colega londrino que disse que o futuro econômico do Brasil era São Paulo. E foi para lá que nos mudamos. Meus pais viveram e faleceram em São Paulo.

Eu, em 1943 me mudei para o Rio de Janeiro onde tinha parte da família, como um tio, irmão da mamãe, e alguns primos. Casei no Rio de Janeiro, nossas filhas nasceram lá, e em janeiro de 1960 meu marido veio transferido profissionalmente para Porto Alegre. Morando aqui, já na primeira ou segunda semana encontrei na rua um ex-colega compositor e flautista que estava dando um curso na Escola de Arte. Eu o convidei para casa e perguntei a quantas andava a cultura em Porto Alegre. Ele disse ‘é bom você arregaçar as mangas e começar logo’.

Eva SopherEva Sopher

E foi aí que tudo começou?

Eu tinha um projeto, ainda no Rio de Janeiro, com a Proarte, de Theodor Heuberger, entidade a qual eu era ligada desde os 16 anos. Então aconteceu a transferência para cá e eu enviei uma correspondência para o Rio e São Paulo, me colocando à disposição, aqui em Porto Alegre, porque não mais poderia seguir com aquela proposta. E veio o aviso, na volta do correio, ‘sim, reative a Proarte aí em Porto Alegre’. Isso foi em março de 1960.

Eu tive o primeiro recital, aqui no Theatro São Pedro com um pianista alemão. A partir disso eu tomei conta da Proarte e em função deste trabalho com a cultura, em 1971, quatro anos antes de assumir o Theatro São Pedro, eu já me tornei cidadã honorífica de Porto Alegre. Quando eu recebi o convite para dirigir o São Pedro, pensei em indicar outra pessoa, afinal eu tinha duas filhas e uma outra casa para administrar. Meu marido tinha viajado e quando voltou me perguntou se eu já havia encontrado alguém. Eu disse que ainda estava à procura e então ele falou: ‘ou você faz ou nada vai acontecer’.

E a sua ligação com a família? Como é que seus netos e bisnetos a veem, sendo a senhora uma avó tão atípica?

Tenho duas filhas, quatro netos e quatro bisnetos com o quinto a caminho. Minha família se criou dentro do São Pedro. Esses dias eu perguntei ao neto mais velho, de 35 anos, se ele lembrava de brincar na areia da obra do Theatro. E ele respondeu ‘é claro que eu me lembro’! Mas eu acho que este meu neto não lembra que antes de começarem as obras no Theatro, eu fiz um tapume em volta e convidei as crianças das escolinhas de arte para pintarem. Como ele era muito pequeno, eu fiz ele sujar a mãozinha na tinta e coloquei a marca no tapume. Ele não deve ter isso na memória, mas foi filmado e fotografado, então ele vê.

Os outros netos e bisnetos brincavam de esconde-esconde dentro da obra, nada mais legal do que brincar dentro de uma obra deste tamanho! É uma coisa tão familiar e tão próxima que é absolutamente normal. Eu me lembro que o outro neto, esse que vai ser o futuro pai, um dia, pela minha mão, atravessando a praça, perguntou: quer dizer que você é o chefe disso aqui tudo? (risos). Quer dizer que para eles nada disso é novidade!

E sobre o seu casamento com Wolf Sopher? A senhora aceitou o pedido duas semanas depois?

Eu teria aceitado dois dias depois! Conheci Wolf em 8 de dezembro de 1945, num sábado, no dia seguinte ele não veio porque era domingo e provavelmente achou que não devia, mas na segunda ele veio e eu acho que na quarta-feira ele disse ‘quero me casar contigo’. Casamos em março do ano seguinte. Desde o primeiro momento nós soubemos: tínhamos encontrado o companheiro de nossas vidas. Nós tínhamos certeza do que queríamos e essa certeza durou 41 anos, de 1946 até 1987, quando o cigarro finalmente o matou.

Eva Sopher (2)Com essa história de amor tão linda, como é que a senhora vê hoje os relacionamentos entre as pessoas?

Olha, é difícil uma avaliação porque o meu casamento foi uma coisa completamente atípica também. Quando surgia a eterna e natural frase, ‘briga de casais’, nós ficávamos quietos porque para mim isso não é algo natural. Sendo pessoas adultas e que se admiram, se elogiam, e se querem bem, não há por que discutir. Quer dizer, hoje em dia, eu acho que as pessoas têm menos paciência. Por exemplo, para que eu fizesse o meu trabalho, acima de tudo eu tive que ter paciência. E eu acho que são duas palavras que regem a minha vida: respeito e paciência. Dominando essas duas palavras, o resto é tranquilo. Mas eu não condeno ninguém por desfazer ou refazer uma relação dentro das suas preferências e possibilidades.

E com os diversos governos do Estado, durante sua trajetória dentro do Theatro São Pedro, como foi a sua relação?

Entre tranquila e intranquila. Os governos são bastante complicados em relação a esta casa porque o papel do governo é a política e nem todos os governadores se interessam pela cultura. Em primeiro lugar eles entendem como necessidade abrigar seus correligionários. Isso faz com que as coisas que não são política passem a não funcionar. Eu comentei esses dias com um colega que está aqui há 25 anos, que nenhum dos secretários da Cultura dos anos anteriores ou dos governos anteriores frequentam o Theatro São Pedro. Eles nunca foram pessoas ligadas à cultura. Eles são ligados a um determinado partido por um determinado motivo político. Mas teve sim, um governador que frequentava a casa antes, durante e depois, e continua frequentando, mas isso é um entre dez.

Outro dia alguém me perguntou como é que Manaus pode financiar os festivais de ópera. A minha resposta foi o que eu li em jornais e em revistas, que o governador de lá vende o pacote de turismo na Europa, com os dois atrativos maiores que são o encontro das águas e o festival de óperas no teatro de Manaus. Então isso é vendido a preço de Euro e é como eu explico porque a ópera é o espetáculo mais caro para ser encenado em um teatro. Precisa da orquestra, dos músicos, dos atores, um elenco muito grande ou numeroso, que torna a coisa financeiramente inviável.

Foto: Tiago Trindade

E alguma vez a senhora quis desistir?

Nunca coloquei meu cargo à disposição do governo porque considero que ele está disponível 365 dias por ano. E eu diria que se não há uma pessoa competente no lugar, essa pessoa deve ser trocada, seja em que posição estiver. Na cultura, na saúde, enfim, onde quer que esteja, se ela não fizer um trabalho legal ela deve ser substituída. Eu entendo assim.

Fora do trabalho, de todas as atividades dentro do São Pedro, a senhora reserva um tempo para si mesma, como ler um livro, ir ao cinema, fazer compras?

Livro é claro, cinema é raro! Faço compras uma vez por semana porque os netos e bisnetos almoçam lá em casa aos domingos. E o resto do tempo é dedicado a este milagre. A única maneira de descrever esta obra é chamando de milagre porque conseguir colocar no mesmo espaço, no mesmo chão, no centro de Porto Alegre, a centenária casa, o nosso galpão crioulo, e este moderno equipamento é um fato inédito. Eu digo que só com a ajuda de São Pedro foi possível unir essas três entidades, essas três maravilhas em um chão só, no centro da cidade, em que as centenárias casas eram planejadas para que fossem o centro da cultura na capital.

Só que as futuras capitais da época, hoje, não encontrariam um metro quadrado que fosse ao lado. Veja o Municipal de São Paulo, o Municipal do Rio, o teatro do Recife ou o de Manaus. Qualquer um dos teatros, hoje em dia, no centro de qualquer capital, não teria a possibilidade de encontrar dez terrenos ao lado para fazer o que nós conseguimos aqui.

A senhora tem algum cuidado especial com a saúde ou para manter a forma?

O trabalho não me deixa envelhecer. Acredito ser única e exclusivamente por causa do trabalho. E a genética, é claro, tenho uma família longeva. O resto é a própria natureza que se encarrega de informar e indicar. Quando se ouve o chamado, atende-se dentro do possível.

Eva SopherEva Sopher

Eu tive um problema na coluna em dezembro de 2007, com a ruptura de uma vértebra que prensou o nervo ciático. Primeiro foi recomendado repouso, que foi a coisa mais errada possível, porque a musculatura vai embora e é justamente do contrário que a gente precisa nessas horas, mas depois que se percebeu que não era por aí eu passei a fazer fisioterapia duas vezes por semana. Quanto mais fortalecida a musculatura, mais ajuda a recuperação das eventuais fraturas. Então, de lá pra cá, melhorou muito.

Com mais de 80 anos, com uma jovialidade e uma disposição invejável, a senhora se considera uma mulher plena?

Eu sou uma mulher plena! E se eu morrer hoje, também não tem importância nenhuma. A obra está aqui, o resultado está aí, os filhos netos e bisnetos estão em andamento [risos]. A minha vida é isso: sou realizada, plena e feliz. Não poderia ter sido diferente.


Imagens: Theatro São Pedro

Eva Sopher: + 07/02/2018

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