A primeira vez em que viu o violão na vitrine da loja apaixonou-se sem saber exatamente o motivo. Já havia passado inúmeras vezes pelo mesmo local e jamais reparara no instrumento.

Porém, naquela noite foi diferente. Como todo garoto da sua idade voltava distraído da escola no seu passo curto e arrastado, evitando chegar em casa. O olhar perdido admirando as pontas dos sapatos sujos naquele andar simétrico. Vinha pensando nas notas vermelhas, nas aulas cabuladas e na desculpa esfarrapada que daria aos pais.

No entanto, logo em seguida, já perdia-se em pensamentos deliciosos devorando com os olhos as pernas das prostitutas que se ofereciam perfumadas, todas as noites, por aquela avenida polvilhada de bares lotados e de bêbados pontuais. Caminhava chutando tampinhas de garrafa e pisando nas bitucas de cigarro ainda em brasa. Os sons da rua atordoavam sua cabeça: estilhaços de copos, o ronco feroz dos motores dos ônibus, risos, água jorrando, batidas das bolas de bilhar, os gritos das putas,tosses, escarros e a porteira da ferrovia subindo e descendo com um blem-blem escandaloso. O trem despejando e engolindo gente comum.

Todos com pressa de chegar em algum lugar. Menos ele. Talvez porque ainda lhe doesse no peito o adeus da namoradinha e o caminhar lento pudesse aplacar a dor do abandono. Concluiu, definitivamente, que tudo estava muito confuso.

As pessoas pareciam não compreender suas dificuldades, seus sentimentos e desejos e a sua vida ia ficando cada vez mais aborrecida. Um mundo complicado de entender. Andava assim pela calçada quando parou de repente e olhou a vitrine iluminada.

O violão estava lá imóvel, silencioso, brilhante. Como nunca o notara?

Olhou para ele fixamente, com um sorriso abobalhado, como que pedindo perdão por não tê-lo visto antes. E admirou emocionado cada detalhe do seu corpo. Contemplou a grande caixa de sinuosas curvas e imaginou suas mãos deslizando suavemente sobre os contornos daquela cintura e acariciando o tampo liso de verniz como se fosse um ventre.

Percorreu com o olhar o longo braço de cedro que parecia brotar da caixa, incrustado de finíssimas barras de metal dourado que lembravam degraus de uma escada onde nunca estivera. Da cabeça do instrumento, onde ramos e folhas entalhavam a madeira mais escura, pendiam tarrachas de madre pérola: delicados brincos como aqueles que via enfeitar as orelhas das mulheres mais velhas. Lá de cima derramavam-se as cordas. Deslizou por elas, finos fios de cabelo e deixou-se enroscar no emaranhado de aço e nailom. E finalmente mergulhou na boca escura, rosácea, redonda, profunda, milagre dos sons e do prazer.

Era seu violão

Acabara de possuí-lo. Ainda assim talvez jamais o tivesse, mas poderia amá-lo eternamente. E então namorou o violão todos os dias, todas as noites, ao ir e voltar da escola. Parava na frente da vitrine enquanto os colegas seguiam seus caminhos. Tornava-se apreensivo e enciumado quando alguém, vendo-o parado tanto tempo defronte à loja, também parava para olhar o instrumento. Então desviava os olhos procurando demonstrar interesse por outros produtos ou caminhava até uma esquina próxima para voltar, pouco depois, assim que o desconhecido se afastava: era o ardill que utilizava para defender seu território e o seu objeto.

Cuidava da calçada chutando para a sarjeta toda a sujeira que encontrava. Limpava com a manga do paletó as marcas de dedos que manchavam a vitrine e que poderiam macular a imagem do instrumento. Aquele espaço tornou-se o seu templo de adoração. O violão, um corpo. Um desejo imenso de tocá-lo. Os meses se passaram e sua rotina continuou a mesma. As pessoas já conheciam seu assombroso desejo e sua mortal pontualidade. Esperavam-no. Virou assunto dileto da avenida sem sabê-lo.

Algumas vezes o dono da loja aparecia à porta e perguntava-lhe quando se decidiria pela compra. Nessas ocasiões respondia cabisbaixo que a família não tinha dinheiro bastante para lhe dar um presente tão caro, nem sabiam que ele gostava tanto do violão. Ora, dizia o homem, os pais sabem coisas que os filhos nem imaginam. Então o menino pedia permissão para continuar olhando a vitrine. Claro que podia, admirava-se o dono da loja. E, para confortá-lo, dizia que estava guardando aquele violão para ele. Isso o deixava aliviado. Ganhava mais tempo para sonhar.

Até que uma noite, ao se aproximar da avenida, percebeu que algo estranho havia acontecido. As calçadas pareciam mais cheias de bêbados e prostitutas. Até os donos dos bares vieram às portas. Porém, lhe afligiu o silêncio absurdo quando o viram chegando. Ninguém mais falou. Acompanhavam-no com o olhar. Podia até ouvir seus próprios passos batendo na calçada. O coração acelerado como que prevendo uma grande tragédia. Seus olhos ansiosos já procuravam a vitrine. E quando parou defronte ao seu templo estarreceu: seu violão havia desaparecido. Vazio o antigo nicho. Foi tomado primeiro por uma angústia.

Um sentimento estranho, a agulhada da perda. Depois a raiva incontida. Os dentes rangendo. Nunca mais passaria por aquela rua. Nunca mais a loja. Nunca mais vitrines. Desesperado correu para casa ouvindo recomeçar, atrás de si, o vozerio barulhento da noite e alguns risos solitários que pareciam acompanhá-lo.

Entrou em casa desejando que os pais não notassem sua presença. Que não percebessem sua tristeza. Não queria conversar com ninguém. Atravessou mortificado a pequena cozinha e a saleta onde mal cabiam os velhos sofás. O pai e a mãe estavam ali sentados juntinhos, sublimes, humildes, esperando pela sua chegada de todos os dias. Nem teve vontade de dizer um olá. Entrou direto para o seu quarto e acendeu a lâmpada. E achou-se dentro da vitrine iluminada: sobre a cama, o violão. Soluçou e chorou de alegria.

Aproximou-se devagar, sentou-se na beirada da cama e apanhou o instrumento com cuidado. Aconchegou-o ao colo, sobre as pernas e o enlaçou com a ternura das crianças. Encostou seu rosto quente e molhado na curva brilhante da madeira. Fechou os olhos e dedilhou cada uma das cordas. O som acariciou seu pensamento e levou para longe o seu corpo de menino. Sorriu. Viver fazia sentido.

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *