Dona Maria Alemã, para diferenciar das muitas Marias que havia na vizinhança, deu um delicioso presente de Natal para nossa família em contrapartida às rezas e benzeduras que minha mãe fazia para espantar encostos e aliviar quebrantos da germânica família: uma caixa de bombons enlaçada com uma fita larga e vermelha, com dezenas de Papais Noel ilustrados na embalagem.

A caixa ficou guardada por alguns dias num canto estratégico, porém conhecido, dentro do guarda-roupas, para ser aberta somente na noite de Natal. Uma dádiva: além dos presentes solicitados ao Papai Noel, que nunca sabíamos se chegariam, uma caixa de chocolates que só víamos, a distância, nas vitrines das lojas.

A partir daí, todos os dias, eu, meu irmão e minha irmãzinha, tentávamos dobrar a resistência de mamãe implorando, encarecidamente, a permissão para comer um bombonzinho só, apenas unzinho para matar a curiosidade e sossegar as lombrigas famintas que já começavam a habitar nossos corpos e nossa imaginação. Lombrigas enormes, vorazes e espertas que espionavam a caixa de bombons, constantemente, observando a firmeza do laço, o peso da caixa, os amassados do celofane, para verificar se tudo continuava em ordem e não tinha sido tocada por ninguém. Ai de quem!

Volta e meia, e nem sempre os três em conjunto, aspirávamos a caixa fechada para ver se conseguíamos subtrair algum aroma de chocolate que escapasse das dobras e encaixes do papelão. Decepcionados, sentíamos sim, o cheiro sem graça do papel. Para não perder a viagem ensaiávamos, como num teatro, o dia do solene acontecimento: quem teria o privilégio de abrir a caixa, como seria a primeira mordida, quantos bombons cada um teria direito, entre outras coisas dessa magnitude. Apesar de tudo apenas o cheiro do celofane penetrava em nossa alma e já acalmava nossa ânsia.

Véspera de Natal

Até que chegou a véspera de Natal. Cedinho acordamos pensando nos bombons como retirantes famélicos. E cerramos fileira junto à mãe. As lombrigas imaginárias com as bocas escancaradas, esfomeadas, dentro de nossas goelas. Olhos de súplica. Mãos em prece. E lá pelas tantas, depois de muito esforço, ela finalmente concordou:

– Tá bom, tá bom, não me torrem mais a paciência… podem abrir, mas… Nem deu tempo de concluir. Disparamos os três aos berros, loucos de alegria, em direção ao guarda-roupas onde ficara guardada a caixa. Fechamos a porta do quarto por dentro com a enorme tramela e apanhamos a relíquia a seis mãos. Abrimos com cuidado e ficamos extasiados com o que vimos: duas dúzias de pequenos Papais Noel encaixados em nichos de papelão finíssimo como se fossem abelhas embutidas em favos de mel. Cada um deles embrulhado em fino papel alumínio e ilustrado com seu uniforme vermelho, cinto e botas pretas, barba e cabelos brancos e o saco de brinquedos às costas. Oito bombons para cada irmão. E decidimos, humildemente, que comeríamos apenas um e deixaríamos os outros para mais tarde e para os dias seguintes.

Porém, ao morder o primeiro, percebemos que havia um líquido maravilhoso dentro dele: uma calda grossa, doce, um pouco ardida ao passar pela garganta, que escorria pelos cantos da boca e que recuperávamos com a ponta da língua para não perder nenhuma gotinha. Dentro de cada Papai Noel sem cabeça, parecendo uma garrafinha, o caldo brilhando. Então bebemos e mastigamos, aos poucos, o pequeno corpo achocolatado do bom velhinho. Mas foi tudo muito rápido e quase nem deu tempo de apreciarmos seu verdadeiro sabor, a suprema delícia. No instante seguinte olhávamo-nos com carinhas de dúvida e gestos de cumplicidade. Um de nós então falou adivinhando o pensamento ansioso dos demais: ─ Não faz mal se a gente comer só mais um, né? Foi a deixa. E cada um comeu e bebeu seu segundo Papai Noel.

Enquanto o segundo bonequinho era digerido o álcool do primeiro começava a fazer efeito em nossas cabecinhas. E a decisão para o terceiro e quarto Papai Noel foi muito mais rápida e já sem nenhum receio ou sentimento de culpa. Às vezes começávamos mordendo pela cabeça, outras vezes pelos pés, em outras, ainda, colocávamos o Noel inteiro na boca e deixávamos que ele derretesse misturando-se com o licor e invadisse nossos corpos, relaxando nossas resistências e estimulando nosso humor e imaginação.

Dali a pouco o próprio Papai Noel, em carne e osso, estava ao nosso lado, sentado com as pernas cruzadas em volta da caixa de bombons praticamente vazia e de mãos dadas conosco. Apareceram também muitos anjos, quase todos parecidos entre si, que circulavam e voavam pelo quarto sobre nossas cabeças e ficavam atrás de nós ou ao nosso lado como se fizessem parte de nossos corpos. Entre outros assuntos perguntamos ao Papai Noel sobre suas renas e ele as apontou: estavam sobre nossas camas, deitadas candidamente, mastigando fronhas e lençóis. Rimos e acenamos para elas que também sorriram e as alertamos que nossas meias estavam penduradas do lado de fora atopetadas de capim fresquinho. Mas elas disseram que preferiam a quentura de nossas camas e o sabor das bolas de algodão duro de dentro dos travesseiros. Eram renas boazinhas e tagarelas.

– Papai Noel, e cadê sua carruagem? Ele então fez um gesto e alguns anjos mais fortinhos nos alçaram em direção à janela. Voamos pelo quarto, suavemente, ao lado dos anjos e vimos uma simples carroça parada na rua. Não era lá tão bonita quanto imaginávamos e resolvemos que poderíamos ajudar o velhinho a ter um veículo mais moderno. Então, rapidamente, pintamos a velha carroça, instalamos rodas iguais as dos carrões que passavam pela nossa rua, colocamos um guidão de bicicleta, buzina como a do carrinho do vendedor de peixe e oferecemos a ele um de nossos travesseiros para acomodar suas costas, mas desde que as renas tão famintas parassem de comê-lo. Ele riu muito e nos perguntou:

– Agora vamos falar sobre seus presentes? Vocês mandaram suas cartinhas, não mandaram?

– Mandamos sim, Papai Noel, mas nem sempre o senhor pode trazer aquilo que a gente pede, não é? Apareceu um sorriso intenso, carinhoso e bonachão no meio de suas barbas e bigodes brancos.

Então, não conseguimos ver de onde, mas ele apanhou um saco enorme, colocou entre nós e foi abrindo aos poucos. Deu para ver um montão de brinquedos coloridos, rodas de bicicleta, guidão de patinete, triciclos, bumbos, cornetas, bonecas, casinhas, violões, bolas de futebol e mais um monte de coisas que não conhecíamos. – Deixe-me ver… deixe-me ver, disse ele, quem é que pediu o time de futebol de botões? – Eu, respondi imediatamente. – Aqui está! Só deu para trazer um time, mas para você não faltarão adversários… e dedique-se mais aos estudos, menino? – Bem, ele continuou, então a bola de capotão número cinco só pode ser sua, não é? E entregou-a para meu irmão do meio. – E não se esqueça de passar sebo derretido para deixá-la sempre nova, heim? Porque você é um tanto distraído mas vai melhorar. – E para você, essa lindeza, a caçula e queridinha da casa, uma boneca que abre e fecha os olhos e diz mamãe… E daqui para frente vê se chora um pouco menos, menina! E gargalhou sua risada gostosa.

Agradecemos e enchemos seu rosto peludo de beijos e abraços. Lá mesmo, dentro do pequeno quarto, abrimos os presentes e começamos a nos divertir no meio das embalagens de chocolate jogadas no chão extravasando nossa felicidade e inocência. Papai Noel ria muito e participava da nossa alegria como se fosse criança também. Jogou futebol de botão comigo e não ganhou uma partida. Aliás, fiz um golaço. Depois, chutou a bola de capotão em direção ao meu irmão que a defendeu espetacularmente: não conseguiu marcar um gol sequer. E estendeu-se no chão para brincar com minha irmã e sua boneca, aliás, com as duas bonequinhas da casa. Enquanto isso os anjos disparavam pelo quarto voando alegremente em todas as direções, fazendo parte das brincadeiras. Podíamos vê-los e senti-los.

Por fim, Papai Noel levantou-se e preparou-se para partir. Pedimos que ficasse mais um pouco, mas ele não podia porque tinha inúmeros compromissos naquele dia. Então as renas puseram-se de pé, indecisas, mas o velhinho apontou para elas o caminho da rua. Olharam-nos com um olhar de até breve e sorriram novamente, barrigudas e fartas de algodão. Os anjos foram esvanecendo-se aos poucos como pequenas bolhas coloridas de sabão e desapareceram do quarto. Num instante a carruagem, linda como nós a fizemos, estava flutuando defronte à nossa casa. As renas atreladas e comportadas nos arreios. Papai Noel passou lépido pela janela, sentou-se no banco e acomodou seu corpo no travesseiro que lhe demos de presente. Sorriu para nós, fez um aceno de adeus e partiu. O saco de presentes, enorme, balançava na parte de trás da carruagem.

Ficamos os três à janela durante um longo tempo olhando felizes e agradecidos em sua direção. E ele foi indo para longe, longe, muito longe e foi ficando pequenininho, bem pequenininho, até que se distanciou para sempre do resto de nossas vidas.

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
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