Durante o dia era sempre uma janela aberta na fachada de uma casa da qual, quando menino, eu morava bem defronte.

A parede era branca, suja de poeira, pedaços de reboco há muito caídos que deixavam à vista os tijolos cada dia mais nus e vermelhos. A janela era pintada de verde e se abria para um quarto confuso onde, sempre numa certa penumbra e por trás da cortina transparente, viam-se algumas camas encostadas às paredes, travesseiros amassados e roupas abandonadas sobre os lençóis.

Nesse quarto dormiam as irmãs Odilia, Odete e Odara. Lindas. Odilia era a mais clara das três e tinha cabelos castanhos ondulados. Odete era morena de cabelos crespos. Odara era mulata de cabelo duro. Todas filhas do mesmo pai, muito negro, e da mesma mãe, muito branca. Odilia fora a primeira a nascer e talvez já tivesse completado dezenove anos. Odete era a do meio e devia ter dezessete. Odara, a caçula, acho que não tinha dezesseis.

Eu vivia apaixonado e desejoso das três. E, da minha janela, observava seus movimentos inocentes e caminhadas descuidadas pelo quarto tentando capturar um pedaço de nudez, um seio ao acaso, o contorno claro de uma bunda ou nesgas de pentelhos. Chegar até elas, impossível.

A casa proibida. Vigiada. A mãe uma fera incontrolável. O pai, guardião incansável. A recompensa acontecia quando vinham à janela e se debruçavam para apreciar a rua e gozar os olhares de desejo dos homens e de inveja das mulheres. Faziam que não ligavam. Vinha Odilia, vinha Odete e vinha Odara. Saía Odete. Saía Odilia. Sorria Odara. Voltava Odete. Partia Odara. Voltava Odilia. Olhava Odete. Brincava Odilia. Corria Odara. Entravam todas. Voltavam sempre. Enrolavam-se na cortina. Abraçavam-se. Sorriam. Gargalhavam. Entristeciam.

Odilia. Odete. Odara. Ah! Por quem me apaixonara? Até que a mãe enfim surgia, olhava enfurecida os dois lados da rua e elas desapareciam no fundo do quarto para voltar pouco depois com suas cores, seus sorrisos e seus cabelos. Seis tetas amparadas pelos braços cruzados sobre o peitoril. Olhares que não me percebiam. Odilia, Odete, Odara. Três corpos na moldura da janela.

Até que numa noite o brilho dos olhos de Odilia refletiu-se nos meus. Numa tarde a boca e os dentes de Odete me sorriram. Numa manhã as mãos de Odara acenaram para mim. O guardião desaparecera manso na distância. Não vi a fera imaginada atrás da porta. E acho que sonhei. Um menino e as três mulheres nas camas desarrumadas, ajustando travesseiros debaixo dos corpos, carinhos multiplicados, lençóis amarrotados, três pares de olhos, seis seios redondos, mãos sem donos, línguas mulatas, pretas, vermelhas, dentes brancos, peles lisas, contornos profundos, carnes macias, brilhos e cores, braços, dedos, cheiros e sabores, pelos castanhos, negros, pequenos caracóis. Pelos de Odilia. Pentelhos de Odete. Cabelos de Odara.

Depois houve somente o teto e a lâmpada apagada. A penumbra. Corpos cansados. Respirações abafadas e mãos que insistem em acariciar. Dedos que ainda tateiam. Uma brisa cálida então soprou a cortina e escancarou o quarto para a luz. Esfriou os corpos. As meninas levantaram-se lentamente e caminharam nuas em direção à janela.

Do outro lado da rua eu olhei e vi Odilia, Odete e Odara. Debruçadas e distraídas sobre o parapeito verde. Metido entre elas, como que zombando da moldura retangular do futuro, um menino magro e descabelado sorriu do papel para mim.

Agliberto Cerqueira
Publicitário pelo Instituto Metodista, aprendiz de farmácia na infância, executivo da indústria automobilística, diretor de agência de promoção e consultor na área de comunicação e marketing. Em 2006 publicou o livro de contos "O quá quá quá do cisne preto - Um passeio ao som do rádio". Quando não está em consultoria e nem pagando imposto, lê muito, escreve quando possível e toca violão.
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